09 fevereiro 2005

No Carnaval... As “Brincas” (3)

Hoje, Quarta-feira de Cinzas, termino a trilogia de posts sobre as "Brincas" de Évora. Se algum dos leitores se interessar pelo tema e quiser mais informações pode entrar em contacto comigo.

As Brincas eram tradicionalmente, e continuam a ser, representadas nas zonas rurais limítrofes da cidade de Évora. Outrora os locais mais conhecidos, de acordo com Luís de Matos (1985), eram a “Quinta dos Apóstolos, Quinta do Ourives, Quinta do Chéu-Chéu, Quinta dos Meninos Órfãos, Quinta da Rafaela, Quinta das Pimentas, Quinta das Torcidas, Lugar da Machoca e muitas outras”. À data em que o autor escreveu, e entre outros locais, as Brincas eram representadas nos birros mais afastados do centro histórico da cidade de Évora (Canaviais, Almeirim, Santo António, Frei Aleixo e Santa Maria), em alguns povoados nos arredores da cidade (Barraca de Pau, Senhor dos Aflitos, Venda do Pascoal, Venda do Alface e Santo Antonico. Entre as freguesias rurais do concelho o mesmo autor refere apenas Valverde. Em 2001, ano em que realizámos o trabalho que serviu de base a estes artigos, apenas foram representadas duas brincas no concelho de Évora a cargo de grupos oriundos do Bairro de Almeirim e do Bairro dos Canaviais o que pode indiciar uma perda de vitalidade desta forma de expressão popular.



Aspecto da representação da «Brinca» “O Geraldo Sem Pavor” por um Grupo do bairro de Almeirim, (Évora, Carnaval de 2001)


A Brinca é a representação pública de um texto – o “fundamento” – escrito em décimas a cargo de um grupo, que originalmente era apenas constituído por elementos do sexo masculino, que como veremos usam vestuário com características específicas. A representação junta à declamação dramatizada dos versos, a música e a dança.

Numa Brinca há dois intervenientes, que pela natureza específica das suas funções, se distinguem dos demais – o palhaço e o “Mestre».

O palhaço é o “faz-tudo”. Serve de ponto, serve igualmente para «tapar» os enganos dos companheiros. Tem uma função essencialmente desorganizadora e anomista na ordem dramática decorrente durante a representação. É um provocador de situações absurdas, irracionais, cómicas...

É, por outro lado, o elemento dinâmico que intervém ao longo de todo o tempo da representação. É o grande elo de ligação entre o círculo onde decorre aquela representação e o próprio povo que assiste e que, subitamente, se encontra envolvido no processo dramático, é «obrigado» a isso pelas brincadeiras dos palhaços e transferindo para o referido espaço cénico os seus sentimentos mais profundos e as suas reacções mais primárias.

O palhaço é o elemento, digamos assim, que retira o eventual excesso de densidade dramática da acção, conferindo-lhe uma «frescura» e um à vontade frequentemente excessivo, por vezes obsceno, para a moralidade e os sistema de regras sociais comunitárias em vigor... Mas, é Carnaval, logo ninguém leva a mal...

O “Mestre», tradicionalmente é visto como uma autoridade assumida e reconhecida enquanto tal pelos restantes companheiros. Em princípio terá recebido o testemunho de um «“Mestre»» mais antigo.

É, regra geral, o ensaiador. A sua função é «mandar» a música, orientar a Brinca, explicar, apresentar e agradecer ao «dono do lugar» durante a estadia do grupo nesse local. É o que responde ao despique – em décimas – com outro “Mestre», se outra Brinca se cruzar com ele, se não chegarem a bom termo as negociações de qual Brinca actuará em primeiro lugar num determinado local.

Possui gestos estereotipados que marcam o ritmo da música, através de movimentos mais ou menos bruscos, mas ritmados e cadenciados, das mãos segurando por vezes algumas fitas coloridas. Ao som de um apito manda executarem-se as diversas marcações das contradanças e das outras movimentações coreográficas.

O Bandeira, como pelo nome se pode concluir, tem como função essencial transportar a bandeira do grupo. Com efeito a Brinca reúne-se em torno de uma bandeira, mastro ou estandarte, por vezes ostentando a bandeira nacional e o nome da própria Brinca, enfeitado artisticamente com armações diversas, papéis coloridos, fitas de seda e outros materiais, dependendo a decoração, em última análise, do gosto e das possibilidades financeiras dos elementos constituintes do grupo.

O Acordeonista distingue-se, como o Bandeira pela sua função específica, mas também, naturalmente pela sua competência específica – o saber tocar acórdeon. Importa desde já salientar que a música desempenha um importante papel na representação da Brinca como mais adiante procuraremos explicitar.

Os outros elementos da Brinca em número variável desempenham os diversos papeis previstos no fundamento da Brinca. Originalmente as Brincas eram apenas representadas por elementos do sexo masculino. A partir dos anos 80, na sequência de um processo de revitalização das Brincas Carnavalescas que foi desenvolvido em paralelo á organização pela Câmara Municipal de Évora dos festejos do Carnaval surgiram algumas Brincas incorporando elementos do sexo feminino. Em 2001, uma das Brincas que “saiu” – a do bairro de Almeirim – tinha elementos do sexo feminino. Quanto àquela que os autores deste trabalho mais atentamente estudaram – a do bairro dos Canaviais – integrava apenas participantes do sexo masculino.

O fundamento constitui o elemento essencial de uma Brinca. Os seus autores – poetas populares – utilizam as décimas como elemento formal através do qual definem as falas dos personagens. O enredo é, quase sempre, marcadamente dramático e intenso e, não raras vezes como já referimos, gira em torno de uma facto real ou lendário de natureza histórica.

Raimundo José Lopes, um poeta popular do Bairro de Almeirim em Évora, constitui um dos últimos, senão mesmo o último, destes poetas populares autores de fundamentos. As duas Brincas representadas em 2001 em Évora são da sua autoria, assim como dele são a quase totalidade das que naquela cidade foram apresentadas nas últimas décadas.

O Fundamento é fornecido pelo respectivo autor com o denominado Ponto de orientação. Este contém, além da distribuição dos papeis respectivos pelos elementos do grupo, numerosas anotações, algumas delas com a menção de «note bem», destinadas obviamente ao ensaiador, com todas as indicações julgadas necessárias. Contém ainda o prelo do fundamento e a assinatura do respectivo autor.

BIBLIOGRAFIA: ARIMATEIA, RUI (1987); As «Brincas» - Manifestações Carnavalescas. In O GIRALDO nº 10 de 10 de Março de 1987 (pgs. 6 e 7), Évora. MATOS, LUÍS DE (1985); Carnaval em Évora – Brincas. Enquadramento temporal das brincas. In Actas do III Congresso do Alentejo (pgs. 1259-1262), Évora

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